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Quando olhamos para uma obra de arte, lemos um bom livro, assistimos a um filme ou escutamos nossas músicas preferidas, é comum pensar nelas como expressões culturais da sociedade e no contexto histórico em que são criadas. Arte, literatura, cinema e música são excelências da criatividade e produção humana. Já o poker e outros jogos são raramente pensados da mesma maneira. Na melhor das hipóteses, eles são considerados apenas como entretenimento. Os jogos são realmente ricos em cultura e significado e, portanto, um objeto atraente da análise antropológica e sociológica. 

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O poker torna-se interessante porque o jogo tem uma capacidade eminente de capturar um conjunto de condições existenciais da vida contemporânea e oferecê-las às mulheres de uma forma que lhes permita explorar, desafiar e ter apoio em certas condições. Quando eu falo que minha relação com a antropologia e o poker são as pessoas, adoto a máxima de Radcliffe-Brown: “Nada existe na mente que não tenha passado pelos sentidos”. O Pocket Poker dessa semana conversou com a dentista e poker player Regina Cassab. A partir da história da Rê, como é carinhosamente chamada pelas amigas, iremos às entranhas do poker como fenômeno social a partir das relações entre mulheres numa determinada estrutura até o diagnóstico positivo para o Carcinoma Papilífero grau VI da jogadora. Segundo o Instituto Nacional de Câncer, só neste ano, cerca de 300 mil mulheres foram diagnosticadas com a doença, em 2017 eram 100 mil casos. O aumento de incidências a cada ano é preocupante, e, segundo Regina, “não custa fazer uma mamografia, não custa ver se está tudo bem com você. A gente precisa fazer esses exames preventivos. Se tiver alguma coisa detectada no começo, é muito mais fácil de tratar. É melhor descobrir antes do que ser tarde demais”. 

Regina Cassab
Regina Cassab

Regina nos contou que, aos 29 anos, iniciou no poker através do seu pai e logo conheceu a Vivian Saliba, hoje, uma das embaixadoras do 888 Poker. São mais de 10 anos de amizade que Regina coleciona na comunidade do poker e foram essas mulheres que deram toda força e incentivo para ela durante a doença. Rê nos conta que “não podia comer muito sal na época e as meninas da Liga Paulista Feminina de Poker fizeram um churrasco sem sal para mim. Lá a gente ensina as meninas a jogar, a gente faz janta, a gente conversa, trocamos experiências. No começo, éramos em 10 e agora nosso grupo tem mais de 120 meninas. Elas me ajudaram muito quando ficaram sabendo da minha doença, me ligaram, mandaram mensagem de apoio. Essas amizades são preciosidades e foi a maior alegria que o poker me deu”. 

Essa função social que o poker exerce, que para muitas pessoas é imperceptível, consiste numa série de relações que mantêm uma estrutura funcionando. São as temporalidades e espacialidades que nos dão diretrizes para vermos essas alianças e que, em outro tempo, poderiam estar em conflitos. O marido de Regina não joga poker e, segundo ela, é um dos maiores apoiadores da carreira dela dentro do jogo. Foi na segunda tentativa de fazer fertilização in vitro que Regina descobriu o câncer. Após fazer todos os tratamentos e estar curada, ela conta que também estava esgotada, foi aí que o marido a convidou para passarem um tempo em Las Vegas, e ela aceitou na hora. Chegando lá, ela venceu um torneio no Wynn, depois de ter vencido três torneios online nos 15 dias de isolamento da Iodoterapia. Além de morar em Miami com o marido por dois anos e viver de poker nesse período, nos EUA, ela conheceu, através do jogo, Las Vegas, Punta del Leste, República Tcheca, Gramado, Brasília e já se prepara para as próximas viagens que virão.

Acredito que uma nova forma de feminilidade surge destas mulheres e o poker, pois é nestes espaços e tempos de encontro que elas falam sobre a maternidade, o câncer, os abusos e todos os tipos de moralidades que as cercam. É inspirador ver que o poker, no Brasil, está deixando de lado velhos hábitos, velhas formas e dá boas-vindas a estas mulheres que dão à luz a novas histórias ao relatarem os conflitos existenciais e suas relações com o esporte da mente. Ao retirarmos da mulher toda sua idealidade mítica e simbólica em um corpo que foi marcado e machucado, segundo uma visão patriarcal, há uma perda da aura simbólica que envolve esses corpos e que denota certas considerações em detrimento de qualidades humanas. O que Regina nos apresenta é um novo patamar de trocas simbólicas ao legislar na esfera cultural do poker um poder unificador que tende cada vez mais a gerar um princípio de transformação. Estas convergências de conteúdos e comportamentos se fundem na existência de um campo feminino relacionado ao jogo e é neste campo que nossas mulheres influenciam e apoiam umas às outras. Para compreender esse momento de reconfiguração destas experiências femininas, Regina Cassab envolveu seus contextos locais e pessoais nos mostrando aspectos de edificação pessoal que a tornam uma campeã no jogo e na luta da vida. Até semana que vem!