A popularização do poker, nos dias atuais, deixa uma coisa muito evidente: ele é um jogo de dinheiro, além de pessoas. Assim, o poker apreende um conjunto de condições existenciais que permeia o capitalismo contemporâneo, que permite às pessoas explorarem, desafiarem e brincarem com essas realidades. A coluna desta semana é baseada na contextualização da globalização mundial do poker do ponto de vista da nossa jogadora brasileira, Ana Freitas, residente nos EUA, mais precisamente em Las Vegas, há quase 15 anos, e que é uma das grandes surpresas do poker feminino brasileiro dos últimos tempos. Lá, ela convive frequentemente com grandes lendas do poker, como Daniel Negreanu, Phil Hellmuth, PhiI Ivey, Justin Bonomo, Shaun Deeb, Erik Seidel, Kelly, etc.
Pensar os jogos e a sociedade não é novidade. Teóricos das Ciências Humanas, como Roger Callois e Johan Huizinga, abordavam a teoria dos jogos desde 1950. Ambos admitiam que existia o risco de falhas analíticas, contudo, ainda hoje, nos perguntamos uns aos outros: qual o verdadeiro sentido do poker? Qual sua essência, mergulhado em tanta tecnologia? Quais são os limites da globalização do jogo? Como funciona essa superestrutura? Ao lembrar do filósofo Jean Baudrillard, destaco que os jogos são governados por regras e a sociedade é governada por leis. A diferença entre regras e leis é que a regra não fornece nenhuma justificativa por si. A regra é uma oferta. Você pode optar por entrar no jogo e seguir a regra, é como decidir se vai aceitar o acordo de ICM em FT. Ou você pode optar por não; a regra não tenta forçar ou convencer você a aceitar.
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A lei, ao contrário, vem com um complemento de justificação. No Brasil, por exemplo, o Ladies, nas etapas do BSOP, tem acesso restrito apenas para mulheres, proibida a entrada de homens. Ana Freitas conta que, nos EUA, o Ladies acontece com 90% de desconto para mulheres, por isso, Ladies Event. E, quando um homem entra no torneio pagando 10 mil dólares, as mulheres comemoram, afinal, são 10 mil a mais de premiação, e tudo fica divertido demais. A cultura pontuada pelo sexismo é combatida por Ana, que diz já ter sofrido preconceito “o poker já me feriu por alguns motivos. Eu sou a única pessoa que não tem uma aparência feminina como as outras jogadoras conhecidas brasileiras e já sofri críticas por isso e inclusive perdi trabalhos pela minha imagem. Aqui, nos EUA, eu sinto que não tem nada disso”, desabafa ela.
As leis que nos dizem o que fazer, qual moeda usar, qual língua falar, também nos fornecem razões para não fazer. Ana carrega a bandeira brasileira onde joga, perdendo, muitas vezes, patrocínios americanos por não querer aderir à bandeira estadunidense. A lei é obrigatória, mas a regra é voluntária. Foi no acordo, conforme as regras, do Seminole Hard Rock Poker Open – NLH Deep Stack, em 2017, que Ana Freitas aceitou o acordo no 4 handed, saindo de lá com 130 mil dólares na mochila. O torneio teve 3.173 entradas. Depois de se emocionar, Ana percebeu que a mochila que guardava o dinheiro era quase igual à que ela havia entrado nos EUA quase dez anos atrás, só que com 600 dólares e um sonho.
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Ana foi homenageada em público pelos outros três participantes restantes do torneio, como uma revelação entre eles. A carreira dela tem menos de três anos, mas é cheia de bagagem cultural, política e social: “Saí do Brasil por vários motivos, fazia faculdade de Direito na época e, pela minha sexualidade também, queria buscar novos horizontes. Peguei uma mochila e resolvi ir para os EUA. Não sabia falar inglês, no começo foi tudo muito complicado. Eu aprendi inglês vendo filmes e colocando legenda e foi assim que eu comecei a me virar. Arrumei trabalho de jogar jornal e limpar casa o dia inteiro”, conta ela.
Ana discute com clareza de uma cidadã global sobre cultura contemporânea, economia e política internacional, empreendedorismo, tudo isso atravessado pelo contexto do cenário do poker mundial, seus circuitos americanos, latino-americanos e europeus. Sua construção identitária tem essa fragmentação globalizada, tanto em sua expressão linguística bilíngue, quanto em sua expressão do significado do poker. “Eu já tive proposta de empresas americanas para patrocínio, mas perdi porque não podia colocar a bandeira brasileira. Eu não gostaria que acontecesse de eu vencer grandes torneios e a pontuação ir para os EUA. Eu amo o Brasil e é o meu país. Quero muito ser uma pessoa que possa adicionar coisas boas na história do poker no Brasil mesmo morando longe”, comenta a jogadora.
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E Ana foi aprendendo as regras, “fui aconselhada a não fazer curso, e sim permanecer com a minha essência e minhas leituras, estou deixando o conhecimento entrar gradativamente. Quando eu comecei nos torneios live eu não sabia as posições e ranges e, aos poucos, fui deixando isso entrar na minha cabeça. Eu não sabia nem os naipes. Eu sofro de insônia e, alguns anos atrás, comecei assistindo Poker After Dark. Eu adorei e comecei a assistir todos os dias. E comecei a ver sem parar. Depois eu comecei a ver todas as temporadas do WSOP, desde 2002 até 2016. Na primeira vez que eu assisti, queria saber o que era flush, 2 pares, straight, trinca, quadra, etc. A segunda vez que eu assisti tudo isso de novo já não era para isso. Peguei uma folha sulfite, colei na minha televisão e comecei a assistir as pessoas, e eu anotava tudo”.
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O que torna o poker tão interessante como um objeto de estudo sociológico é a capacidade do jogo de captar com precisão os recursos da nossa sociedade capitalista, que são emblemáticos em diferentes pontos da história (elitização de buy-ins e divisão de classes, reordenação do sistema financeiro para transações de moedas internacionais, a modernização do jogo pelas plataformas online até a IA). A interação entre a natureza dos jogadores e suas representações nas apostas, que conferem ao jogo sua condição reflexiva humana, deu a Ana Freitas a percepção de que “para jogar poker não importa o que eu tenha, importa o que eles têm. Se eu descobrir o que aquelas 8 pessoas têm eu não preciso ter cartas. Isso é o poker, você aprende a ler as pessoas. Você tem que conhecer as pessoas com quem você está jogando e, se você conseguir contato com essas pessoas, você vai longe no poker”, revela Ana.
Quem vai longe é ela; venceu a si mesma, desafiou-se e conquistou o lugar que muitos de nós buscam durante anos. Sorte? Percepção? Coincidência? Dom? Ana autodenomina-se uma jogadora recreativa e diz que, quando senta à mesa agradece por ver duas cartas. Para ela, poker é a arte do Doyle Brunson e um meio de realizar sonhos. É impossível não se impressionar com o conhecimento e bagagem de vida dessa jogadora. Aqui, dei uma pincelada em sua história; os próximos capítulos ela mesma contará para todos nós! Ana Freitas é poker raiz! See ya soon, Aninha! Até semana que vem!